A 28 de fevereiro de 1955, soube-se que oito tripulantes de um navio da Marinha de Guerra da Colômbia que viajava de Mobile, Estados Unidos, para o porto colombiano de Cartagena, haviam caído no mar e desaparecido por causa de uma tormenta no mar do Caribe. A busca dos náufragos iniciou-se assim que o navio chegou a seu destino, duas horas depois do acidente. Depois de quatro dias, desistiu-se da busca e os marinheiros desaparecidos foram declarados mortos. Dez dias depois, o marinheiro Luís Alexandre Velasco, de 20 anos, apareceu moribundo numa praia deserta do norte da Colômbia. O livro "Relato de um náufrago" é a reconstituição jornalística do que Luís contou ao autor Gabriel García Márquez, na época jornalista do El Espectador, um jornal de Bogotá.
O texto que segue é um fragmento desse livro.

Eu era um morto

Não me lembro do amanhecer do sexto dia. Tenho uma idéia nebulosa de que, durante toda a manhã, fiquei prostado no fundo da balsa, entre a vida e a morte. Nesses momentos, pensava em minha família e a via tal como me contaram agora que esteve durante os dias do meu desaparecimento. Não fiquei surpreso com a notícia de que tinham me prestado homenagens fúnebres. Naquela sexta manhã de solidão no mar, pensei que tudo isso estava acontecendo. Sabia que haviam comunicado à minha família o meu desaparecimento. Como os aviões não voltaram, sabia que tinham desistido da busca e que me haviam declarado morto.
Nada disso era errado, até certo ponto. Em todos os momentos, tratei de me defender. Encontrei sempre um meio de sobreviver, um ponto de apoio, por insignificante  que fosse, para continuar esperando. No sexto dia, porém, já não esperava mais nada. Eu era um morto na balsa.
À tarde, pensando que logo seriam cinco horas e os tubarões voltariam, fiz um desesperado esforço para me levantar e me amarrar à borda. Em Cartagena, há dois anos, vi na praia os restos de um homem destroçado por tubarão. Não queria morrer assim. Não queria ser repartido em pedaços entre um montão de animais insaciáveis.
Eram quase cinco horas. Pontuais, os tubarões estavam ali, rondando a balsa. Levantei-me penosamente para desatar os cabos do estrado. A tarde era fresca. O mar, tranquilo. Senti-me ligeiramente fortalecido. Subitamente, vi outra vez as sete gaivotas do dia anterior e essa visão infundiu em mim renovados desejos de viver.
Nesse instante teria comido qualquer coisa. A fome me incomodava. Mas o pior era a garganta e a dor nas mandíbulas, endurecidas pela falta de exercício. Precisava mastigar qualquer coisa. Tentei arrancar tiras de borracha dos sapatos, mas não tinha com que cortá-las. Foi então que lembrei dos cartões da loja de Mobile.
Estavam num dos bolsos da calça, quase completamente desfeitos pela umidade. Rasguei-os, levei-os à boca e comecei a mastigar. Foi um milagre: a garganta se aliviou um pouco e a boca se encheu de saliva. Lentamente continuei mastigando, como se aquilo fosse chiclete. [...] Pensava continuar mastigando os cartões indefinidamente para aliviar a dos das mandíbulas e até achei que seria desperdício jogá-los no mar. Senti descer até o estômago a minúscula papa de papelão moído e desde esse instante tive a sensação de que me salvaria, de que não seria destroçado pelos tubarões. [...]
Afinal, amanheceu o meu sétimo dia no mar. Não sei por que estava certo de que esse não seria o último. O mar estava tranquilo e nublado, e quando o sol saiu, mais ou menos às oito da manhã, eu me sentia reconfortado pelo bom sono da noite. Contra o céu cinza e baixo passaram sobre a balsa as sete gaivotas.
Dois dias antes eu sentira uma grande alegria vendo as sete gaivotas. Mas quando as vi pela terceira vez, depois de tê-las visto durante dois dias consecutivos, senti o terror renascer. "São sete gaivotas perdidas", pensei, com desespero. Todo marinheiro sabe que, às vezes, um bando de gaivotas se perde no mar e voa sem direção, durante vários dias, até encontrar e seguir um barco que lhe indique a direção do porto. Talvez aquelas gaivotas que vira durante três dias fossem as mesmas todos os dias, perdidas no mar. Isso significava que eu me distanciava cada vez mais da terra.

(Gabriel García Márquez. Relato de um náugrago)


Deixe um comentário

Tecnologia do Blogger.